O diretor americano Spike Lee divulgou recentemente uma lista com 87 filmes que, na sua opinião, são os “maiores já feitos” (veja o vídeo aqui). Essa relação é entregue por Spike anualmente aos seus alunos na New York University, onde leciona há 15 anos.
De modo geral, a lista é bem interessante. No entanto, há nela filmes inexplicavelmente citados, como Arizona Nunca Mais – que não chega perto de ser o melhor dos irmãos Coen -, e outros tantos ignorados, algo que sempre acontece em relações desse tipo.
Ciente disso, Spike pediu para que longas-metragens essenciais que não estão na lista fossem lembrados e enviados a ele. Seguindo esse conselho, listo abaixo, sem ordem de preferência, outros vinte filmes que considero fundamentais na história da Sétima Arte. A lista de Spike Lee, com o nome das obras em inglês, aparece a seguir.
A Aventura, de Michelangelo Antonioni
– 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick
– A Aventura, de Michelangelo Antonioni
– Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola
– Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese
– Cidadão Kane, de Orson Welles
– Cidade dos Sonhos, de David Lynch
– Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder
– Era Uma Vez na América, de Sergio Leone
– Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone
– Fale com Ela, de Pedro Almodóvar
– Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick
– Luzes da Cidade, de Charles Chaplin
– Manhattan, de Woody Allen
– Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman
– Passageiro: Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni
– A Regra do Jogo, de Jean Renoir
– Taxi Driver, de Martin Scorsese
– Tempos Modernos, de Charles Chaplin
– Umberto D., de Vittorio De Sica
– Viagem à Lua, de George Méliès
E para você: quais outros filmes mereciam estar nas listas acima? Deixe sua opinião na caixa de comentários!
“My friends, I address you all tonight as you truly are; wizards, mermaids, travelers, adventurers, magicians… Come and dream with me.”
A fala de Ben Kingsley no papel de Georges Méliès em uma das partes-chave do filmeA Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, serve bem para introduzir a experiência que tive no ultimo domingo. Não, não era Georges quem estava em cima do palco do Museu da Imagem e do Som (MIS) apresentando algumas de suas produções, mas sim a sua bisneta, Marie-Hélène Lehérissey-Méliès, e seu tataraneto, o músico Lawrence. No entanto, o ambiente era semelhante àquele vivenciado pelos primeiros admiradores das imagens em movimento, com um pianista se encarregando de tirar o rótulo de ‘mudo’ dos filmes e uma narradora situando o espectador e indo um pouco além do papel que viria a ser dos intertítulos. De diferente, mesmo, só o menor barulho dos projetores atuais, que há muito tempo não necessitam de uma manivela para funcionar.
Mágico de sucesso na Paris do final do século XIX, Méliès viu no cinematógrafo dos irmãos Lumiére o que nem os seus próprios inventores enxergaram: a possibilidade de utilizar o instrumento de modo ficcional, fantasioso e criativo, o que se diferenciava sobremaneira dos filmes documentais até então realizados. Desbravando as possibilidades que o novo meio lhe oferecia, o francês realizou mais de 500 filmes entre 1896 (ano seguinte à invenção do cinema) e 1913, sendo o produtor, o diretor, o roteirista, o cenógrafo e o ator principal na grande maioria deles. No MIS, onde está sendo realizada uma exposição sobre a carreira do cineasta (sobre a qual tratarei em breve), 16 dessas obras foram exibidas no último domingo.
Tomando-as como um todo, pude notar e apreciar a intensa experimentação que Méliès realizou em seus filmes. Sem nenhuma base anterior de linguagem cinematográfica, o francês não tinha outra alternativa senão inovar, e muitas das suas descobertas – como o efeito stop action, que deu início aos efeitos especiais -, foram feitas na prática. Por causa disso, e também pelo tom quase sempre bem-humorado adotado, as produções do francês são carregadas de uma contagiante alegria pelo descobrimento de novas técnicas e pelo deslumbramento que elas causavam não só nos espectadores, mas também em seu realizador (veja abaixo um exemplo claro disso no filme L’homme a la tête en caoutchouc, de 1901).
Assistir a um filme de Georges Méliès, seja ele qual for, é presenciar a evolução do cinema ao status de Arte e lembrar dos motivos que nos levam até hoje em direção àquela sala escura, na qual ainda nos emocionamos com imagens em movimento. Pois mais de 100 anos após os seus lançamentos, essas produções continuam a encantar plateias como a do último domingo, que, mesmo já tendo contato com uma linguagem cinematográfica consolidada ao longo de mais de um século, não deixa de entender a comicidade universal dessas obras, e, mais do que isso, a relevância histórica tanto do contexto cultural daquela época, quanto dos avanços técnicos realizados por Méliès – é impressionante, por exemplo, constatar que vários desses filmes já eram coloridos manualmente, quadro a quadro, em processo que levava cerca de quatro meses por exemplar.
Em meio a truques com pessoas/objetos (O Homem Orquestra), histórias com inspiração literária (Barba Azul) e até religiosa (A Tentação de Santo Antônio, considerado o primeiro filme sobre o tema), Méliès realizou a sua obra-prima em A Viagem à Lua, primeiro filme de ficção científica da história. Lançado em 1902, apenas sete anos (!) após a invenção do cinematógrafo, a obra apresenta conceitos de montagem e efeitos especiais muito avançados para a época. Com cerca de dez minutos de duração, a história dos cientistas que resolvem explorar o satélite natural da Terra revela não só a grande capacidade criativa do seu realizador, mas também todo o imaginário coletivo de uma época em que chegar até a Lua não passava de um grande sonho (veja o filme abaixo).
Com obras como essa, Méliès abriu caminho para novas evoluções na linguagem cinematográfica, e por isso seu pioneirismo não deve ser esquecido nunca. Não à toa, a família do diretor se dedica há quatro gerações a difundir o legado de seu membro mais famoso, sendo que, para isso, até textos feitos pelo cineasta para introduzir os seus filmes foram transmitidos oralmente.
Bem-humorada e brincando com o público, a bisneta de Méliès disse no MIS que se alegrava pelo alto número de jovens na plateia do evento (que teve de abrir uma sessão extra pela alta procura por ingressos), e também pelo fato de que os filmes de seu parente estavam sendo assistidos “como devem ser vistos” – em uma sala de cinema.
Aqueles que não estiveram presentes no MIS, no entanto, têm outras oportunidades para entrar em contato com a singular obra do diretor francês. Além dos muitos vídeos presentes no Youtube, é altamente recomendável aos interessados no assunto um DVD chamado Uma Sessão Méliès (Cultclassic), que está sendo vendido em lojas como Saraiva e Livraria Cultura por R$ 19,90. Nele, a neta, e não a bisneta, é quem apresenta 15 filmes de Méliès, que também são acompanhados simultaneamente por um pianista.
Quem conhece minimamente Martin Scorsese sabe de seu impressionante conhecimento sobre a história do Cinema e sobre filmes das mais variadas épocas e nacionalidades. Curiosamente, o mais cinéfilo dos diretores ainda não havia realizado uma homenagem à altura da paixão de sua vida, embora todas as suas produções sejam permeadas de referências pontuais a diversas obras. Pois esta lacuna em uma cinematografia tão brilhante não poderia ser preenchida com mais êxito do que com este A Invenção de Hugo Cabret, primeira obra de Scorsese filmada em 3D e com temática infanto-juvenil.
Hugo Cabret é um solitário órfão que vive dentro de uma estação de trem e trabalha clandestinamente na manutenção dos relógios do lugar. Sem conseguir superar a morte do pai, o garoto não possui nenhuma vida social e resume seus contatos com o mundo exterior a rápidas saídas com o intuito de realizar pequenos furtos para sobreviver.
É bem provável que o diretor tenha identificado na história do protagonista algumas características de sua própria infância. Asmático e com uma mãe superprotetora, Scorsese observava da janela de sua casa o que se passava com os outros garotos de sua idade sem poder se juntar a eles. Já Hugo parece viver em um mundo paralelo, e só enxerga a iluminada e pulsante Paris pelos vidros da estação de trem. Além do voyeurismo (característica inerente ao Cinema), os dois têm em comum a paixão por filmes.
Pois é através desse alter ego solitário que Scorsese nos guia por uma jornada de descobrimento que só ganha sentido quando Hugo encontra Isabelle, esperta garota que o ajudará a resolver um mistério que julga essencial para modificar a sua infeliz existência. Esta aventura aparentemente simples nos reserva fatos surpreendentes, que tornam o terceiro ato do filme uma verdadeira ode ao Cinema.
Lidando pela primeira vez com o 3D, o diretor decidiu utilizar o recurso não por mero modismo, mas sim por reconhecer nele uma ferramenta essencial para a história a ser contada. Apenas a reconstituição do primeiro filme da história, feito pelos irmãos Lumiére, já justificaria a utilização da tridimensionalidade devido à curiosa reação que a platéia da época teve ao assistir a uma simples imagem de um trem chegando a uma estação francesa.
No entanto, o filme é todo pensado para ser realizado no formato, não apenas em suas numerosas referências metalinguísticas. Logo no início, Scorsese nos presenteia com um travelling de rara beleza que percorre toda a estação de trem e chega ao relógio do local, onde pela primeira vez vemos o protagonista. O deleite visual provocado pela cena é prorrogado por algum tempo, e o primeiro diálogo só ocorre minutos depois, quando já fomos apresentados ao local onde Hugo vive.
Para adentrarmos na Paris dos anos 30 é fundamental, além da imersão do 3D, a impecável reconstituição de época, que deve ter seus méritos divididos entre o design de produção de Dante Ferretti (reparem que um personagem dado como morto mora em frente a um cemitério) e a fotografia de Robert Richardson (a melhor já realizada em um filme 3D). Também é digna de nota a bela trilha sonora composta por Howard Shore, que além de evocar o passado consegue dar tons de aventura e suspense à narração sem nunca deixar de ser elegante.
A seleção do elenco também se mostra acertada, principalmente em relação aos astros mirins. Asa Butterfield consegue demonstrar toda a angústia interior de seu personagem quando é exigido, e Chloe Grace Moretz exala um grande espírito de aventura sem se tornar irritante (repare na felicidade da garota ao receber ordens para vigiar uma porta). Entre os adultos, Ben Kingsley se destaca novamente na composição de um homem decepcionado que se recusa a lembrar de seu passado glorioso, enquanto Sacha Baron Cohen (de Borat) surpreende ao não deixar de dar comicidade e humanidade ao papel de um inspetor implacável – e o seu sorriso forçado para a mulher que gosta, mesmo quando anuncia uma morte, revela sua falta de habilidade no trato social.
Completam a equipe do longa a ótima montadora Thelma Schoonmaker, colaboradora de Scorsese desde 1980, e o roteirista John Logan. Schoonmaker demonstra seu talento logo em uma das primeiras cenas, quando realiza uma bela fusão entre a engrenagem de um relógio (peça de grande importância para a história) e a paisagem de Paris. Já Logan faz o que pode para aumentar o interesse pela primeira parte da narrativa, criando personagens secundários que acabam se relacionando de uma forma ou de outra com o núcleo principal. A ideia do homem como peça de uma máquina maior, repetida em alguns momentos-chave, também cai bem para um garoto que busca algum sentido para seguir em frente.
Mesmo com todos esses méritos, o restante do filme se apequena bastante quando comparado à sua parte final, que, assim como nessa crítica, é a mais importante. Ao homenagear o francês Georges Méliès, Scorsese relembra o homem que se negou a acreditar que o Cinema fosse uma “invenção sem futuro” e que foi o primeiro a trazer a fantasia para os filmes. Pois foi ali, no início do século XX, que Méliès deu a base para tudo o que viria a seguir, passando por Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd e chegando aos dias atuais, nos quais este filme vem provar que o 3D pode se impor não só comercial, mas artisticamente.
Grande entusiasta da preservação e restauração de filmes antigos (Scorsese possui uma fundação focada nesse trabalho), o diretor acredita que a memória dos pioneiros que transformaram o Cinema em uma fábrica de criar sonhos nunca deveria ser perdida, pois ali está a essência daquilo que veio a conquistar milhões de fãs nos últimos 116 anos. E é lutando contra o esquecimento de Méliès e de tantos outros com histórias parecidas que o cineasta faz um apelo para que nossa fascinação quase instintiva diante da tela de cinema seja renovada, apesar de o ar de novidade vivenciado pelos contemporâneos dos Lumiére ter ficado para trás.
No texto em que escrevi sobre O Artista descrevi o filme de Michel Hazanavicius como “apenas mais uma bela homenagem ao Cinema”. Pois agora me arrisco a dizer que este A Invenção de Hugo Cabret é a mais bonita e apaixonada declaração de amor já feita à Sétima Arte – e o formato de coração da chave que inicia a solução do mistério do filme não me deixa mentir.