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Quem conhece minimamente Martin Scorsese sabe de seu impressionante conhecimento sobre a história do Cinema e sobre filmes das mais variadas épocas e nacionalidades. Curiosamente, o mais cinéfilo dos diretores ainda não havia realizado uma homenagem à altura da paixão de sua vida, embora todas as suas produções sejam permeadas de referências pontuais a diversas obras. Pois esta lacuna em uma cinematografia tão brilhante não poderia ser preenchida com mais êxito do que com este A Invenção de Hugo Cabret, primeira obra de Scorsese filmada em 3D e com temática infanto-juvenil.

Hugo Cabret é um solitário órfão que vive dentro de uma estação de trem e trabalha clandestinamente na manutenção dos relógios do lugar. Sem conseguir superar a morte do pai, o garoto não possui nenhuma vida social e resume seus contatos com o mundo exterior a rápidas saídas com o intuito de realizar pequenos furtos para sobreviver.

É bem provável que o diretor tenha identificado na história do protagonista algumas características de sua própria infância. Asmático e com uma mãe superprotetora, Scorsese observava da janela de sua casa o que se passava com os outros garotos de sua idade sem poder se juntar a eles. Já Hugo parece viver em um mundo paralelo, e só enxerga a iluminada e pulsante Paris pelos vidros da estação de trem. Além do voyeurismo (característica inerente ao Cinema), os dois têm em comum a paixão por filmes.

Pois é através desse alter ego solitário que Scorsese nos guia por uma jornada de descobrimento que só ganha sentido quando Hugo encontra Isabelle, esperta garota que o ajudará a resolver um mistério que julga essencial para modificar a sua infeliz existência. Esta aventura aparentemente simples nos reserva fatos surpreendentes, que tornam o terceiro ato do filme uma verdadeira ode ao Cinema.

Lidando pela primeira vez com o 3D, o diretor decidiu utilizar o recurso não por mero modismo, mas sim por reconhecer nele uma ferramenta essencial para a história a ser contada. Apenas a reconstituição do primeiro filme da história, feito pelos irmãos Lumiére, já justificaria a utilização da tridimensionalidade devido à curiosa reação que a platéia da época teve ao assistir a uma simples imagem de um trem chegando a uma estação francesa.

No entanto, o filme é todo pensado para ser realizado no formato, não apenas em suas numerosas referências metalinguísticas. Logo no início, Scorsese nos presenteia com um travelling de rara beleza que percorre toda a estação de trem e chega ao relógio do local, onde pela primeira vez vemos o protagonista. O deleite visual provocado pela cena é prorrogado por algum tempo, e o primeiro diálogo só ocorre minutos depois, quando já fomos apresentados ao local onde Hugo vive.

Para adentrarmos na Paris dos anos 30 é fundamental, além da imersão do 3D, a impecável reconstituição de época, que deve ter seus méritos divididos entre o design de produção de Dante Ferretti (reparem que um personagem dado como morto mora em frente a um cemitério) e a fotografia de Robert Richardson (a melhor já realizada em um filme 3D). Também é digna de nota a bela trilha sonora composta por Howard Shore, que além de evocar o passado consegue dar tons de aventura e suspense à narração sem nunca deixar de ser elegante.

A seleção do elenco também se mostra acertada, principalmente em relação aos astros mirins. Asa Butterfield consegue demonstrar toda a angústia interior de seu personagem quando é exigido, e Chloe Grace Moretz exala um grande espírito de aventura sem se tornar irritante (repare na felicidade da garota ao receber ordens para vigiar uma porta). Entre os adultos, Ben Kingsley se destaca novamente na composição de um homem decepcionado que se recusa a lembrar de seu passado glorioso, enquanto Sacha Baron Cohen (de Borat) surpreende ao não deixar de dar comicidade e humanidade ao papel de um inspetor implacável – e o seu sorriso forçado para a mulher que gosta, mesmo quando anuncia uma morte, revela sua falta de habilidade no trato social.

Completam a equipe do longa a ótima montadora Thelma Schoonmaker, colaboradora de Scorsese desde 1980, e o roteirista John Logan. Schoonmaker demonstra seu talento logo em uma das primeiras cenas, quando realiza uma bela fusão entre a engrenagem de um relógio (peça de grande importância para a história) e a paisagem de Paris. Já Logan faz o que pode para aumentar o interesse pela primeira parte da narrativa, criando personagens secundários que acabam se relacionando de uma forma ou de outra com o núcleo principal. A ideia do homem como peça de uma máquina maior, repetida em alguns momentos-chave, também cai bem para um garoto que busca algum sentido para seguir em frente.

Mesmo com todos esses méritos, o restante do filme se apequena bastante quando comparado à sua parte final, que, assim como nessa crítica, é a mais importante. Ao homenagear o francês Georges Méliès, Scorsese relembra o homem que se negou a acreditar que o Cinema fosse uma “invenção sem futuro” e que foi o primeiro a trazer a fantasia para os filmes. Pois foi ali, no início do século XX, que Méliès deu a base para tudo o que viria a seguir, passando por Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd e chegando aos dias atuais, nos quais este filme vem provar que o 3D pode se impor não só comercial, mas artisticamente.

Grande entusiasta da preservação e restauração de filmes antigos (Scorsese possui uma fundação focada nesse trabalho), o diretor acredita que a memória dos pioneiros que transformaram o Cinema em uma fábrica de criar sonhos nunca deveria ser perdida, pois ali está a essência daquilo que veio a conquistar milhões de fãs nos últimos 116 anos. E é lutando contra o esquecimento de Méliès e de tantos outros com histórias parecidas que o cineasta faz um apelo para que nossa fascinação quase instintiva diante da tela de cinema seja renovada, apesar de o ar de novidade vivenciado pelos contemporâneos dos Lumiére ter ficado para trás.

No texto em que escrevi sobre O Artista descrevi o filme de Michel Hazanavicius como “apenas mais uma bela homenagem ao Cinema”. Pois agora me arrisco a dizer que este A Invenção de Hugo Cabret é a mais bonita e apaixonada declaração de amor já feita à Sétima Arte – e o formato de coração da chave que inicia a solução do mistério do filme não me deixa mentir.

Nota: 8,5/10